Pois é.

Há um jeito brasileiro que me aterroriza. O deboche, a grossura, o preconceito.

sábado, 17 de julho de 2010

Ideologia, eu quero uma também.


Ninguém o definiu melhor do que ele mesmo. Nem de forma mais sintética, numa palavra só – exagerado. Era vida demais, lucidez demais, sensibilidade demais. Tudo filtrado pelo alento, que também era um excesso. Quando partiu, aos 32 anos, depois de passar pela musica brasileira feito um cometa perturbador de camadas adormecidas, Cazuza conseguira vários milagres. Fundiu o rock à MPB, integrando definitivamente a guitarra elétrica à cuíca, aproximando Cartola de Lou Reed, Nelson Cavaquinho de Janis Joplin; mostrou, em letras como as de “Brasil” ou “Ideologia”, que o delicado e subjetivo poeta de “Codinome Beija-Flor” podia também ser um sarcástico critico social. Atrás da rebeldia e do gosto pelo tratamento de choque nos bem-pensantes, uma ânsia única e simples: beber, de todas as maneiras, todo amor que pudesse haver nesta vida. Agenor de Miranda Araújo Neto, seu pomposo nome verdadeiro, positivamente não combinaria com ele. Dentro do garoto que gostava de imitar Maria Bethânia em cima da mesa da sala, um cabo de vassoura fingindo de microfone, o moleque Cazuza já estava escondido. E começou a vir à tona em 1981 quando, junto com Frejat, fundou o Barão Vermelho. Foram três discos com o grupo, até 1985. Partindo para a carreira solo, então, nos cinco anos seguintes que lhe restavam de vida terrena e criação, em suas canções e seu comportamento, Cazuza traria uma dilacerada contemporaneidade para estas terras ao sul do Equador. Ninguém como ele, à sua maneira tropical – transitório, eterno e príncipe maldito como Jim Morrison –, refletiria tão precisamente sua geração e seu tempo. Cada vez mais acelerado, com menos tempo a perder com aquilo que não fosse profundamente verdadeiro, embora doloroso, o poeta Cazuza evoluiu das letras românticas ou atrevidas para ouras mais pungentes, capazes de concentrar toda a condição humana. A voz cada vez mais rouca, quem sabe pela consciência de não passar de uma cobaia nas mãos de um Deus talvez cruel, finalmente pediu piedade para a gente careta e covarde que não conseguira calá-lo. Tudo que era fúria, virou também amor. E o que foi sombra, transformou-se em luz. Espelho dos nossos infernos e paraísos mais comuns, e mais secretos, Cazuza partiu cedo. Mas só aparentemente, porque no redondo completo de sua trajetória, ferido em pleno vôo, provou o que uma de suas escritoras preferidas, Clarice Lispector, gostava de repetir - "as grandes sensibilidades nunca passam impunes". Além do brilho incomum de sua obra poética e musical, deixou ao Brasil outras lições ainda mais fundamentais. Integridade, dignidade. Pois afinal, dizer coisas sérias ao mesmo tempo em que se divertia como um doido, também fazia parte do seu show...

(Por Caio Fernando Abreu)

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