Pois é.

Há um jeito brasileiro que me aterroriza. O deboche, a grossura, o preconceito.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

O Dia Em Que Júpiter Encontrou Saturno


O Dia Em Que Júpiter Encontrou Saturno (Caio Fernando Abreu)

- Você gosta de estrelas?

- Gosto. Você também?

- Também. Você está olhando a lua?

- Quase cheia. Em Virgem.

- Amanhã faz conjunção com Júpiter.

- Com Saturno também.

- Isso é bom?

- Eu não sei. Deve ser.

- É sim. Bom encontrar você.

- Também acho.


(Silêncio)


- Você gosta de Júpiter?

- Gosto. Na verdade “desejaria viver em Júpiter onde as almas são puras e a transa é outra”.

- Que é isso?

- Um poema de um menino que vai morrer.

- Como é que você sabe?

- Em fevereiro, ele vai se matar em fevereiro.

- Hein?


(Silêncio)


- Você tem um cigarro?

- Estou tentando parar de fumar.

- Eu também. Mas queria uma coisa nas mãos agora.

- Você tem uma coisa nas mãos agora.

- Eu?

- Eu.


(Silêncio)


- Como é que você sabe?

- O quê?

- Que o menino vai se matar.

- Sei muitas coisas. Algumas nem aconteceram ainda.

- Eu não sei nada.

- Te ensino a saber, não a sentir. Não sinto nada, já faz tempo.

- Eu só sinto, mas não sei o que sinto. Quando sei, não compreendo.

- Ninguém compreende.

- Às vezes sim. Eu te ensino.

- Difícil, morri em dezembro. Com cinco tiros nas costas. Você também. Do poema “Vazio na carne”, de Henrique do Vaile.

- Também, depois saí do corpo. Você já saiu do corpo?


(Silêncio)


- Você tomou alguma coisa?

- O quê?

- Cocaína, morfina, codeína, mescalina, heroína, estenamina, psilocibina, metedrina.

- Não tomei nada. Não tomo mais nada.

- Nem eu. Já tomei tudo.

- Tudo?

- Cogumelos têm parte com o diabo.

- O ópio aperfeiçoa o real.

- Agora quero ficar limpa. De corpo, de alma. Não quero sair do corpo.


(Silêncio)


- Acho que estou voltando. Usava saias coloridas, flores nos cabelos.

- Minha trança chegava até a cintura. As pulseiras cobriam os braços.

- Alguma coisa se perdeu.

- Onde fomos? Onde ficamos?

- Alguma coisa se encontrou.

- E aqueles guizos?

- E aquelas fitas?

- O sol já foi embora.

- A estrada escureceu. Mas navegamos.

- Sim. Onde está o Norte?

- Localiza o Cruzeiro do Sul. Depois caminha na direção oposta.


(Silêncio)


- Você é de Virgem?

- Sou. E você, de Capricórnio?

- Sou. Eu sabia.

- Eu sabia também.

- Combinamos: terra.

- Sim. Combinamos.


(Silêncio)


- Amanhã vou embora pra Paris.

- Amanhã vou embora pra Natal.

- Eu te mando um cartão de lá.

- Eu te mando um cartão de lá.

- No meu cartão vai ter uma pedra suspensa sobre o mar.

- No meu não vai ter pedra, só mar. E uma palmeira debruçada.


(Silêncio)


- Vou tomar chá de ayahuasca e ver você egípcia. Parada ao meu lado, olhando de perfil.

- Vou tomar chá de datura e ver você tuaregue. Perdido no deserto, ofuscado pelo sol.

- Vamos nos ver?

- No teu chá. No meu chá.


(Silêncio)


- Quando a noite chegar cedo e a neve cobrir as ruas, ficarei o dia inteiro na cama pensando em dormir com você.

- Quando estiver muito quente, me dará uma moleza de balançar devagarinho na rede pensando em dormir com você.

- Vou te escrever carta e não mandar.

- Vou tentar recompor teu rosto sem conseguir.

- Vou ver Júpiter e me lembrar de você.

-Vou ver Saturno e me lembrar de você.

- Daqui a vinte anos voltarão a se encontrar.

- O tempo não existe.

- O tempo existe, sim, e devora.

-Vou procurar teu cheiro no corpo de outra mulher. Sem encontrar, porque terei esquecido. Alfazema?

- Alecrim. Quando eu olhar a noite enorme do Equador, pensarei se tudo isso foi um encontro ou uma despedida.

- E que uma palavra ou um gesto, seu ou meu, seria suficiente para modificar nossos roteiros.


(Silêncio)


- Mas não seria natural.

- Natural é as pessoas se encontrarem e se perderem.

- Natural é encontrar. Natural é perder.

- Linhas paralelas se encontram no infinito.

- O infinito não acaba. O infinito é nunca.

- Ou sempre.


(Silêncio)


- Tudo isso é muito abstrato. Está tocando Kiss, kiss, kiss. Por que você não me convida para dormirmos juntos.

- Você quer dormir comigo?

- Não.

- Porque não é preciso?

- Porque não é preciso.


(Silêncio)

- Me beija.

- Te beijo.

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